As forças de segurança sauditas provavelmente não se deram conta de que a prisão de dois homens nos seus 70 anos, na aldeia de Awamiyah (Província Oriental) na noite de 3 de outubro, terminaria levando a protestos por duas noites seguidas nessa área de maioria xiita, com um saldo de 14 feridos, incluindo 10 policiais.
Saleh al Zayed, de 72 anos de idade, foi um dos homens presos numa tentativa da polícia em forçar a rendição de seu filho e de outro homem, acusados de participar de protestos antigoverno. Zayed sofreu um ataque cardíaco, e a notícia deste desencadeou os violentos protestos em frente à delegacia, nos quais jovens xiitas jogaram coquetéis Molotov e fizeram disparos contra as forças de segurança. Vídeos divulgados no YouTube mostraram grupos de jovens sauditas, com suas faces cobertas com camisetas, provocando a polícia e bloqueando ruas com barris de petróleo vazios e fogueiras.
Abrangendo cerca de 10% da população do reino, que chega a 23 milhões, a maior parte dos dois milhões de xiitas vive na Província Oriental, rica em petróleo, e vem protestando regularmente por mais liberdade desde que forças sauditas foram despachadas para o vizinho Bahrein, em março, na tentativa de ajudar o governo sunita dos Al-Khalifas a interromper os protestos liderados por xiitas naquele país.
Os xiitas vêm há muito enfrentando discriminação em uma Arábia Saudita que segue uma interpretação “Wahhabi”, bastante conservadora, da religião, interpretação na qual os xiitas são considerados heréticos. A organização Human Rights Watch, em um relatório de 2009, cobrou do reino a criação de um comitê nacional para garantir que os xiitas obtivessem acesso igual à educação superior, igualdade no emprego (inclusive nas forças de segurança e em altas posições ministeriais) e liberdade de devoção religiosa. Infelizmente, até agora pouco foi feito para melhorar a situação dos xiitas.
O Ministério do Interior saudita atacou o último protesto, jogando a culpa pela violência em “um grupo de marginais e baderneiros em motocicletas” que haviam se reunido em Awamiyah, próxima à cidade de Qatif, “portando bombas de óleo”. O ministério prometeu utilizar “pulso de ferro” no trato com tais perturbações e culpou pelos protestos as incitações oriundas “de um país estrangeiro que pretende prejudicar a segurança e a estabilidade da nação”, de acordo com a Agência Saudi Press. Tais tipos de enunciados são normalmente interpretados segundo uma linguagem em código indicando que o Irã estaria por trás dos protestos.
O xeque Nimr al-Nimr de Awamiyah, um proeminente clérigo xiita, foi rápido em pedir calma, solicitando aos insurgentes que utilizem “palavras” ao invés de “balas” em sua luta por mais liberdade e igualdade. “As autoridades (sauditas) dependem de balas...e assassinatos e prisões. Temos que depender do rugido da palavra, das palavras da justiça”, disse Nimr em seu sermão na noite de 4 de outubro. Ele sustentou que a juventude foi levada a protestar após os tiros da polícia.
A Arábia Saudita não tem sido imune aos levantes desse ano em todo o mundo árabe, com os protestos protagonizados, em março, por mulheres exigindo o direito de dirigir. Mas as autoridades responderam com maciças demonstrações de força, colocando centenas de policiais armados nas ruas das principais cidades para deter quaisquer protestos. O rei Abdullah, monarca absoluto, também anunciou recentemente um pacote de ajuda financeira de 35 bilhões de dólares, o qual inclui salários mais altos para funcionários do governo, a construção de mais casas subsidiadas para sauditas mais destituídos e pagamentos para desempregados.
Alguns analistas afirmam que não estão surpresos com a inquietação nas áreas de maioria xiita e disseram esperar mais demonstrações no futuro, a não ser que as condições dos xiitas passem por melhora.
“Não posso dizer que estou surpreso”, disse Alex Vatanka, do Instituto do Oriente Médio de Washington. “Isto é, afinal de contas, algo que tem sido intensificado pelo impulso mais amplo da Primavera Árabe e também, talvez, devido à mobilização xiita no ‘vizinho de porta’ Bahrein”.
Por outro lado, Tawfiq Alsaif, um proeminente intelectual xiita da Província Oriental, disse estar surpreso pela escala dos protestos em Awamiyah e enfatizou que o desenvolvimento econômico da área de penúria faria muito para aliviar as tensões.
“O que me surpreendeu foi, de um lado, a escala do incidente e, de outro, a resposta politicamente pobre do estado”, disse Alsaif. “Awamiyah é uma cidade com problemas econômicos e sociais de longa data. Localizada a apenas 600 metros de alguns poços de petróleo, é bastante subdesenvolvida e tem uma alta taxa de desemprego, bem como serviços precários nas áreas de saúde, transporte e educação. Assim, pelo menos nas últimas quatro décadas, a cidade se estabeleceu como um ponto de tensão, tanto social como politicamente. Durante os últimos cinco anos, o Conselho Municipal de Qatif propôs uma tentativa de reestruturar a cidade como um passo para eliminar a pobreza e melhorar os serviços públicos. O Ministério das Finanças já concordou com parte do projeto, que, segundo o esperado, deve ser levado a cabo nos próximos quatro anos. Portanto, não devemos ignorar as fontes políticas e econômicas de tensão”, concluiu ele.
Jane Kinninmont, pesquisadora sênior da Chatham House em Londres, disse haver muitas similaridades entre as demandas de xiitas no Bahrein e na Arábia Saudita, ainda que os xiitas sejam maioria no Bahrein e tenham gozado historicamente de maior liberdade do que seus homólogos sauditas.
“Existem ressentimentos particulares entre os xiitas sauditas em função de sua falta de liberdade religiosa e da percepção de que são tratados como cidadãos de segunda classe”, disse Kinninmont. “Muitos cidadãos xiitas, tanto no Bahrein como na Arábia Saudita, estão profundamente ofendidos pela tendência histórica do governo em tratá-los como se fossem, de algum modo, desleais. E muitos xiitas sauditas estavam alarmados em ver seu governo enviar tanques em apoio ao governo do Bahrein enquanto este esmagava protestos pacíficos por lá”.
Até agora, protestos xiitas na Arábia Saudita estiveram limitados a pequenos grupos de pessoas mais jovens, diferentemente do que aconteceu no Bahrein, onde, na primavera passada, xiitas de todas as idades foram às ruas em massivos protestos. Alguns analistas dão crédito aos xiitas mais velhos da Província Oriental por acalmarem os espíritos dos mais jovens, mas por quanto tempo isto continuará permanece incerto, ainda que esteja claro que nem o governo saudita nem a comunidade xiita desejam que seu confronto alcance a escala observada no Bahrein.
“Os xiitas sauditas tem sido quietos em comparação com os xiitas no Bahrein”, disse Simon Henderson, do Instituto de Política para o Oriente Próximo de Washington. “Acredito que a causa seja porque os mais velhos em sua comunidade fizeram um apelo para contê-los. O futuro depende da incerta continuidade dessa política por parte dos mais velhos, bem como da também incerta continuidade de sua influência e controle sobre sua juventude”.
Com o rei Abdullah já com 87 anos e o príncipe herdeiro também nos seus 80, o próximo na sucessão é seu Ministro do Interior Príncipe Naif, um “falcão” que sempre se manifestou raivosamente em relação ao Irã. Isto poderia ser um mau presságio para os xiitas.
“Muitos xiitas na Arábia Saudita, especialmente na geração mais antiga, consideram o Rei Abdullah alguém que buscou melhorar os padrões de vida de sua comunidade. O Príncipe Naif, no entanto, é significativamente menos popular entre a comunidade xiita, e muitos se preocupam com a possibilidade de sofrer marginalização caso ele venha a ocupar o trono”, apontou Kinninmont.
Henderson afirmou que o governo saudita poderia mostrar boa vontade para com sua comunidade xiita indicando um ministro xiita e investindo mais dinheiro na Província Oriental, mas sublinhou que nenhuma dessas ações é provável.
“A rivalidade entre a Arábia Saudita e o Irã situa-se no contexto histórico de rivalidade entre as vertentes sunita e xiita do mundo islâmico. Os eventos no Bahrein, e em menor medida em Qatif, são a linha de frente dessas rivalidades”, explicou Henderson.
Xiitas sauditas têm se mostrado bem conscientes das tentativas, por parte de alguns no governo saudita, de conectá-los ao Irã, o grande poder Xiita da região, e fizeram um tremendo esforço para enfatizar sua independência espiritual e financeira em relação aos mulás iranianos. Ainda sim, não se sabe se esses esforços serão capazes de protegê-los de outras intrigas na atual batalha por influência no mundo árabe entre a Arábia Saudita e o Irã.
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