Homens xiitas no Bahrein protestam contra o governo. (AFP)
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A visão de sorridentes soldados sauditas fazendo o sinal de paz enquanto entravam no Bahrein em veículos blindados leves, no dia 14 de Março, deve ter surpreendido muitos sauditas e bahreinitas, que provavelmente nunca tinham sonhado que iriam testemunhar uma cena dessas em suas vidas.
Mas o rei Hamad bin Khalifa Al-Eissa, o governante sunita do Bahrein cuja família está no poder há 200 anos, havia chamado os estados membros das seis nações do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) para ajudar a sufocar os longos e frequentemente violentos protestos de membros da maioria xiita, que, a essa altura, haviam passado da Praça Pérola para o distrito financeiro.
O Bahrein sempre se orgulhou de sua abertura relativa e de sua facilidade para fazer negócios. Que multidões de manifestantes, compostas de seus próprios cidadãos insatisfeitos, tenham transformado a pequena ilha-estado em algo decididamente menos favorável às empresas foi demais para alguns membros da família real. O fato é que, nos bastidores, uma luta emergia entre o príncipe mais reformista Salman bin Hamad Al-Khalifa, e futuro rei, e o primeiro-ministro linha-dura Sheikh Khalifa bin Salman Al-Khalifa. A chegada das tropas do CCG (os Emirados Árabes Unidos contribuíram com 500 soldados, somados a reforços do Catar e do Kuwait) e a subsequente remoção violenta dos manifestantes do distrito financeiro não deixaram dúvida de que a facção linha-dura estava ganhando.
As cenas televisionadas de manifestantes xiitas sendo baleados à queima-roupa e, em alguns casos, tendo acesso negado a cuidados médicos imediatos mostrou o conflito em sua forma terrível: a elite sunita rica contra os mais pobres e discriminados xiitas, que reclamavam melhores empregos, uma monarquia constitucional e um parlamento totalmente eleito. No início, o rei fez algumas concessões, trocando alguns ministros de seu gabinete, prometendo novas eleições no futuro e concedendo somas de dinheiro para o povo. Mas os partidos xiitas de oposição rejeitaram tais ofertas como insuficientes, e logo os radicais de ambos os lados endureceram suas posições. Mesmo a oposição xiita parecia dividida entre o Partido Wefaq e Mushaima Hassan, que havia recentemente retornado ao país após ser perdoado pelo rei e agora clamava pela abolição da monarquia e formação de uma república.
Essa radicalização das demandas xiitas com certeza enviou ondas de choque através de Riade, Doha, Kuwait, Abu Dhabi e Muscat, as capitais dos países do Golfo que possuem governantes hereditários que nunca tiveram de compartilhar muito poder com ninguém. Mushaima e cinco outros líderes da oposição foram imediatamente detidos e encarcerados.
Estes tristes acontecimentos levaram xiitas no Iraque e no Líbano a realizar comícios para mostrar sua solidariedade em relação a seus irmãos no Bahrein e para pedir a retirada das tropas da Arábia Saudita. No Irã, 700 manifestantes jogaram pedras no Consulado da Arábia Saudita em Mashhad no dia 18 de Março. Na semana passada, em Teerã, o clérigo radical aiatolá Ahmed Jannati exortou os xiitas do Bahrein a resistirem "contra o inimigo até que você morra ou vença". O Irã retirou posteriormente seu embaixador do Bahrein e a ilha-estado, em seguida, expulsou um diplomata iraniano. Finalmente, no dia 20 de março, o rei do Bahrein, numa clara alusão ao Irã, anunciava que seu país havia frustrado um plano de três décadas que uma nação estrangeira havia arquitetado para desestabilizar seu país quando seu exército apertou o cerco contra os manifestantes pró-democracia.
Muitos observadores têm, portanto, caracterizado o confronto no Bahrein como uma batalha por influência na região entre a Arábia Saudita de maioria sunita e o Irã de maioria xiita. Com os xiitas tendo chegado ao poder recentemente no Iraque e no Líbano, o Bahrein tornou-se uma linha vermelha na areia diante da influência crescente do Irã na região, linha que nenhum dos estados governados por sunitas no Golfo permitirá ser cruzada.
"O Bahrein é visto como o quintal da Arábia Saudita, e uma possível derrota dos Al-Khalifa abriria a porta, mais amplamente do que antes, para a influência iraniana", disse Christopher Davidson, pesquisador em política do Oriente Médio na Universidade de Durham, no Reino Unido, e autor de vários livros sobre os Emirados Árabes. "Mais importante, trata-se tanto de uma linha vermelha geopolítica quanto de uma linha vermelha para os regimes autocráticos do Golfo: se os Al-Khalifa forem derrubados, a ‘bolha de invencibilidade’ dos xeiques do Golfo será quebrada."
Toby Jones, professor assistente de história do Oriente Médio na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, e especialista em assuntos da Arábia Saudita, destacou em uma entrevista que os protestos no Bahrein estavam sendo transformados em uma questão sectária pelos governos do Golfo e não pelos próprios manifestantes.
"Nenhum dos países árabes do Golfo quer ver a queda de um vizinho próximo, especialmente com os vários elementos sectários em jogo. Quero deixar claro aqui, porém, que acho que são os governos árabes sunitas do golfo, e não os manifestantes em Bahrein ou em outros lugares, que estão jogando a carta sectária. Minha sensação é que os manifestantes, e eu conheço muitos deles, são sérios quando falam sobre democracia", disse Jones.
Dos seis países do CCG, o Bahrein é o único com uma população de maioria xiita.
Contudo, apesar da retórica inflamada vinda de Teerã, muitos analistas acreditam que o Irã está sendo cauteloso na forma como vem se envolvendo no conflito do Bahrein, ciente de que tem muitos problemas internos para administrar e também porque teme entrar em conflito direto com a Arábia Saudita ou os Estados Unidos.
"Apesar do que disse o rei do Bahrein, não há provas conclusivas de que o Irã esteja se armando ou mesmo de que seja o principal fator por trás da oposição. A retórica anti-Khalifa do Irã intensificou-se, no entanto, e isso é de se esperar. Num momento em que os xiitas no Oriente Médio estão visivelmente irritados pela intervenção saudita contra seus irmãos, calar-se não é uma opção para Teerã, autodeclarado protetor dos xiitas no mundo. Dito isto, ainda não vejo nenhuma prova de que o Irã seja logisticamente a força crítica por trás dessa agitação no Bahrein", disse Alex Vatanka, um estudioso do Middle East Institute, em Washington, e especialista em política iraniana.
"Uma razão importante pela qual o Irã não faria isso é porque tal medida iria aproximá-lo de um conflito com os EUA ainda mais do que já foi o caso nos últimos anos. Os EUA não vão cruzar os braços com a sua 5 ª Frota no Bahrein e deixar o Irã executar um campanha armada pró-Teerã. Como no Iraque, o Irã poderia ajudar as forças locais xiitas no futuro, mas não chegamos ainda nesse estágio ", acrescentou Vatanka.
Autoridades sauditas estão alarmadas diante da possível propagação da agitação do Bahrein para a minoria xiita de sua população, que fica a apenas 22 quilômetros de distância ao longo da ponte que liga os dois países, na província oriental onde está a maior parte do petróleo saudita. Xiitas já realizaram protestos reclamando a retirada de tropas sauditas no Bahrein, mas a mensagem vinda de importantes xiitas sauditas tem sido, até agora, de calma e diálogo.
O líder religioso xiita saudita Sheikh Hassan Al-Saffar divulgou, em seu site, um comunicado em que denuncia a violência no Bahrein e pede uma solução política e a reconciliação nacional.
No entanto, permanece o irônico fato de que a chegada dos Sauditas e de outras tropas do CCG no Bahrein levou ambos os lados a polarizarem-se, deixando muito menos espaço para concessões. Quanto tempo essas tropas estrangeiras vão permanecer no Bahrein também não está claro, com alguns analistas prevendo que sua presença pode se estender por tempo indeterminado, já que a oposição poderia reivindicar vitória caso elas fossem para casa mais cedo.
"A estratégia de saída das tropas da Arábia Saudita e do CCG não é clara. Também não é claro como o Bahrein vai definir vitória. A partida das tropas nas próximas semanas ou mesmo nos próximos meses seria provavelmente percebida como uma abertura pela oposição bahreinita. Os sauditas e os bahreinitas sabem disso, e minha intuição é a de que as forças do CCG permanecerão por algum tempo", disse Jones.
"Os Al-Khalifa não estão interessados no diálogo, já que qualquer concessão aos manifestantes será vista como um sinal de fraqueza. Além disso, os Al-Saud e outros xeiques do Golfo também estarão relutantes diante da possibilidade de que os Al-Khalifa se prestem ao diálogo", disse Davidson.
Jones, o professor da Rutgers, concorda, afirmando que a violência desencadeada contra os manifestantes no Bahrein mudou toda a equação. "Nenhum dos lados mostrou-se disposto a ceder. A intransigência da oposição é um resultado direto de como o regime do Bahrein administrou o levante, especialmente de seu recurso à violência. Houve um tempo em que havia mais espaço para o acordo. Wefaq parece preparado a ceder algum terreno quanto a este ponto, mas se Mushaima, Haqq e outros farão o mesmo é uma questão importante", disse Jones.
A administração Obama foi pega em um ato de malabarismo, apoiando publicamente a revolta popular na Líbia e liderando os ataques militares aliados ao regime de Muammar Khadafi, ao mesmo tempo em que permanece solidamente comprometida em apoiar as famílias Al-Khalifa e Al-Saud.
"Os EUA têm garantido confidencialmente para os bahreinitas que desejam que os Al-Khalifa permaneçam no poder, deixando muito claro que, embora não apóiem publicamente a repressão e denunciem a ferocidade desta, eles também não abandonariam os Al-Khalifa a curto prazo", explicou Jones. "Mas os EUA também têm demonstrado um padrão duplo na forma como vêm definindo resultados “justos” – atacando Kadafi na Líbia, mas fechando os olhos para os manifestantes no Bahrein e na Arábia Saudita. Com isso, os EUA continuam a projetar um confuso conjunto de valores para o resto da região e para o mundo".
A bola está agora firmemente na corte dos Al-Khalifa. Será que eles realmente querem compartilhar mais poder com os seus cidadãos? No passado, eles disseram que sim, mas isto acabou por se mostrar retórica vazia.
"Nas primeiras duas semanas de manifestações, a demanda principal dos manifestantes era a restauração da Constituição de 1973, que permite uma monarquia semi-constitucional. Creio que o sentimento de traição por parte do povo foi o principal motivo por trás dos protestos. Uma década atrás, o rei havia prometido uma transição gradual para a democracia. Na realidade, ele agarrou todos os poderes e tirou do conselho eleito quaisquer poderes significativos", disse Tawfiq Alsaif, um dos principais intelectuais xiitas em Dammam, na Arábia Saudita.
O que começou como um inverno de descontentamento árabe na Tunísia e no Egito parece agora estar se transformando em uma primavera de descontentamento na Líbia e no Bahrein, que pode bem se estender para o verão.
Traducao: Gabriel Peters
Para ler o original em ingles no Al-Ahram Weekly Online clique aqui.
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