A diplomata indiana Devyani Khobragade
Essa coluna foi publicada no O Globo de 27/12/2013:
Rasheed Abou-Alsamh
A prisão de uma diplomata indiana em Nova York algumas semanas atrás provocou tanta indignação na Índia que o governo indiano retirou as barricadas que protegiam a embaixada americana em Nova Délhi, e uma delegação de deputados americanos em viagem para a Índia se viu esnobada pelos seus homólogos indianos.
Mas por que tanta fúria? Parece que a diplomata em questão, a vice-cônsul em Nova York, Devyani Khobragade, tinha sido denunciada pela sua ex-empregada Sangeeta Richard por ter sido forçada a trabalhar sete dias por semana, por 10 a 12 horas por dia, e ser paga somente US$ 3,30 por hora, bem abaixo do salario mínimo em Nova York, de US$ 7,25 por hora. Richard disse que foi obrigada a tomar conta dos dois filhos de Devyani sem nenhum dia de repouso. Alguns meses atrás ela se cansou do trabalho quase escravo e fugiu. A vice-cônsul nega as acusações, dizendo que ela dava todo domingo de folga para Richard poder ir à missa na igreja e se encontrar com suas amigas.
Ambas as mulheres nessa história são indianas, mas uma da classe media-alta, a outra da classe trabalhadora. Até aí essa história não tem nada de muito especial. Mas a transposição do ambiente do trabalho da Índia até os Estados Unidos é o que mudou tudo. Com certeza, um salário de US$ 3,30 por hora ia ser considerado muito bom para uma empregada na Índia, onde o salário mínimo é de US$ 0,28 por hora. Nesse quesito, o Brasil se sai melhor com US$ 1,98 por hora, mas, ainda assim, muito abaixo dos EUA, e certamente muito pior do que o salário mínimo na Austrália, o maior do mundo, com US$ 16,88 por hora.
Com certeza a vinda de Sangeeta para os EUA, onde as leis trabalhistas são mais evoluídas e aplicadas com mais rigor, ajudou a abrir os olhos dela para o fato de que estava sendo explorada. Ela agora está processando Devyani para receber o dinheiro devido a ela e também pediu asilo nos Estados Unidos.
O que enfureceu os indianos tanto nesse episódio não foi o fato de Sangeeta processar Devyani, mas o jeito como a vice-cônsul foi maltratada por policiais americanos. Ela diz que foi presa na frente da escola dos filhos quando estava deixando-os lá, algemada e jogada numa cela com viciados numa delegacia. Diz também que foi revistada várias vezes, inclusive nas suas partes íntimas. O promotor encarregado do caso, Preet Bharara, insiste que ela foi tratada como qualquer outra pessoa e com dignidade.
Para mim, estes são maus-tratos sob qualquer ângulo que olhamos. A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961 prevê certas cortesias e imunidades para diplomatas em casos como esse. O Departamento de Estado americano diz que Devyani gozava somente de imunidade parcial por causa do nível diplomático dela, mas eu acho isso uma interpretação equivocada. No meu ver, qualquer diplomata num consulado ou embaixada, seja ele o terceiro secretário ou o embaixador, goza das mesmas imunidades diplomáticas. O embaixador indiano para a ONU em Nova York, depois que esse escândalo explodiu, transferiu a diplomata para a missão dele, para tentar lhe dar mais cobertura diplomática. Não sabemos ainda se o governo americano vai aceitar essa manobra.
Infelizmente, a história de trabalho demais para pouco dinheiro não é incomum no mundo de empregados domésticos. De Nova York a Riad e até a Cingapura, existem muitas empregadas que são exploradas e abusadas. Um estudo da Organização Mundial do Trabalho lançado este ano disse que há 52 milhões de empregados domésticos no mundo, 83% deles mulheres. O Brasil lidera com 6,7 milhões de empregados domésticos, seguido da Índia com 4,2 milhões, e a Indonésia em terceiro lugar com 2,4 milhões. Segundo esse estudo, 29,9% de empregados domésticos no mundo não são cobertos por leis trabalhistas e — mais preocupante — 45% deles não têm um dia de folga durante a semana ou férias pagas anuais.
Os Estados Unidos deviam pedir desculpas formalmente para a diplomata para apaziguar o governo e o povo indiano. Algemando-a na frente dos filhos e revistando-a tão bruscamente ficaram muito aquém das cortesias diplomáticas às quais Devyani tem direito. Mas o processo legal contra a diplomata deve seguir em frente e ela deve pagar os ganhos de sua ex-empregada.
É irônico que Devyani é de origem humilde também, e que ela falava em público sobre a necessidade de dar apoio aos direitos das mulheres. Afinal das contas, ter uma empregada não é mais um direito dos mais endinheirados, mas sim um privilégio. E é nos EUA onde nós vemos isso mais frequentemente.http://oglobo.globo.com/opiniao/uma-diplomata-sua-empregada-11160509#ixzz2pAleboTI
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