Os corpos das vitimas xiitas do ataque em Dalwa, no chão antes de ser enterrados na Arábia Saudita. (foto AFP)
Nem todos os xiitas sauditas acreditam que seus governantes tenham mudado de opinião sobre eles. Isso é uma pena
Essa é minha coluna que foi publicada no O Globo de 14/11/2014:
Por Rasheed Abou-Alsamh
O ataque com armas de fogo e metralhadoras a fieis xiitas que estavam saindo de uma husseiniyah (um lugar usado para ocasiões religiosas), no vilarejo de Dalwa, na província oriental da Arábia Saudita, no dia 3 de novembro, deixou oito mortos, a maioria deles adolescente. A matança ocorreu no meio do festival xiita de Ashoura, em que é lembrada a morte do imã Hussein, neto do profeta Maomé, numa batalha há mais de 1.300 anos, em Kerbala. Com o Oriente Médio no meio de conflitos regionais sectários em Síria, Líbano e Iraque, esse ataque, uma raridade na Arábia Saudita, foi calculado para ser o estopim de uma guerra entre sunitas e xiitas sauditas. Só que isso não aconteceu.
O governo saudita reagiu rapidamente, enviando à região forças policiais e militares para caçar os terroristas responsáveis pelo ataque. Em poucos dias, mais de 33 suspeitos estavam presos em dez cidades, com o líder do grupo sendo um saudita que supostamente tinha lutado com o Estado Islâmico no Iraque e tinha voltado ao país para estimular a discórdia e promover a matança em solo saudita.
Enquanto isso, na madrugada do dia 5 de novembro, o ministro saudita de Informação e Cultura, Abdul Aziz Khoja, condenou o ataque na sua conta no twitter e informou que tinha dado ordens para fechar o escritório em Riade da estação islamita de televisão a satélite Wesal, por disseminar o ódio contra os xiitas. “Estou banindo suas transmissões no reino,” ele escreveu no twitter. “Essa estação não é saudita.” Curiosamente, a agência oficial de notícias, a Saudi Press Agency, noticiou no mesmo dia que o rei Abdullah ibn Abdulaziz tinha aceitado a demissão do ministro, segundo ele a pedido do próprio Khoja.
Comentaristas sauditas disseram que Khoja, de fato, está com problemas de saúde e velho, mas o timing do anúncio de sua aposentadoria não podia ter sido pior, por dar a impressão que ele talvez tenha sido demitido por causa do que fizera com o canal de televisão.
Em todo caso, os sauditas que esperavam lucrar depois desse massacre com um acirramento sectário num país de maioria sunita (que conta com 10% a 15% da população xiita) se viram frustrados. O rei Abdullah e a mais alta autoridade religiosa do país, o grande Mufti Sheikh Abdul Aziz al-Sheikh, vigorosamente condenaram o ataque, dizendo que nada podia abalar a união dos sauditas e do país. Al-Sheikh declarou que o ataque foi contra os ensinamentos do Islã. Mas mais do que isso foi a visita do ministro do interior, o príncipe Mohammed bin Naif, às famílias dos policiais mortos em confrontos com os terroristas depois do ataque, e depois à cena do ataque, o que agradou a muitos sauditas.
Mas a cena mais emocionante com certeza foi o enterro das vítimas do ataque, na sexta-feira, 7 de novembro, em Dalwa, quando 10 mil enlutados entraram no vilarejo, xiitas e sunitas que saíram de todas as partes do país, unidos em seu pesar de ter que enterrar as oito vítimas. Com bandeiras pretas e verdes xiitas, misturadas com bandeiras sauditas, eles fizeram uma procissão através do vilarejo até o cemitério, entoando slogans xiitas e evocando santos, numa celebração de união nacional. De acordo com o “Wall Street Journal”, uma delegação de sunitas saiu de Meca para participar do enterro. Eles ficaram agradavelmente surpresos quando foram puxados para frente, de modo a ficarem perto do palco, erguido para a ocasião. Antes, eles temiam não ser tão bem recebidos.
“Não é uma surpresa para nós na Arábia Saudita testemunhar membros sunitas das forças de segurança do nosso país dando suas vidas para proteger as dos seus irmãos xiitas,” escreveu Salman Aldossary, editor-chefe do jornal saudita “Al-Sharq Al-Awsat". “A real surpresa aqui, em minha opinião, é que as forças buscando incitar o ódio sectário e conflitos entre sauditas não tiveram, nessa ocasião, sucesso entre a grande maioria da população. Desta vez prevaleceram o amor dos sauditas pelo seu país e a profundidade do sentimento e tristeza com a tragédia que se abateu sobre seus concidadãos, e não o projeto sectário. Desta vez o terrorismo falhou miseravelmente, e esse ataque pode muito bem ser o nocaute que vai terminar com o projeto sectário de uma vez por todas,” concluiu Aldossary.
É verdade que os xiitas sauditas têm sido negligenciados pelo governo por muitos anos, mas talvez isso esteja finalmente mudando. Em junho deste ano o rei Abdullah nomeou o primeiro ministro xiita, Mohammed ibn Faisal Abu Saq. Essa era uma reivindicação xiita de longa data. Muito mais precisa ser feito, a começar por deixar claro que o discurso de ódio contra xiitas, proferido por alguns líderes sunitas, não será mais aceitável. Em mesquitas pelo país, muitos sheiks preconceituosos pregam o ódio aos xiitas. Isso tem que acabar.
Nem todos os xiitas sauditas acreditam que seus governantes tenham mudado de opinião sobre eles. Isso é uma pena. O medo dos xiitas tem que ser vencido na sociedade saudita, senão nunca seremos uma nação unida. E aí sim, o ódio e a discórdia terão vencido, algo que, tenho certeza, a maioria dos sauditas não queria ver acontecer.
http://oglobo.globo.com/opiniao/quando-incentivo-ao-odio-falha-14552913#
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