Um traficante morto em Manila. (foto AFP)
Essa coluna foi publicada no O Globo de 02/09/2016:
Por Rasheed Abou-Alsamh
Inocentes serão executados em casa ou na rua. Uma menina de 5 anos já morreu quando dispararam contra o avô dela
As Filipinas estão sofrendo uma onda de execuções extrajudiciais de pequenos traficantes de drogas desde que o novo presidente da República, Rodrigo Duterte, foi empossado, dia 30 de junho. De lá para cá, já morreram dois mil traficantes, 900 deles em confrontos com a polícia, e 1.100 nas mãos de paramilitares.
Duterte, que foi prefeito de Davao, no sul do país, por sete mandatos e é conhecido pelo apelido de O Punidor, tem a reputação de ser durão com criminosos. Ele limpou a cidade de drogas e da criminalidade, usando a polícia e esquadrões da morte. Em Davao, até os bares de karaokê têm que fechar às 22h para não incomodar vizinhos. O presidente foi eleito em maio deste ano com 40% dos votos, e sua taxa de aprovação junto à opinião pública estava em 90% em julho.
No início de agosto, Duterte divulgou uma lista com 150 nomes, entre eles generais, juízes, policiais, prefeitos e vários políticos, que ele acusou de envolvimento com tráfico de drogas no país. Disse que todos os policiais seriam afastados das suas funções e deu 24 horas para cada um na lista se entregar à Polícia Federal para ser investigado. Afirmou ainda que 600 mil pessoas estão envolvidas com drogas nas Filipinas, entre usuários e traficantes. Estima se que, em agosto, 565.805 usuários tenham se entregado às autoridades.
“Um monte de gente de coração mole, incluindo senadores da República, está reclamando da taxa de mortalidade na luta contra as drogas,” disse ele em discurso dia 17 de agosto. “Se a resistência é violenta, colocando assim a sua vida em perigo, atire e atire para matar. Posso ser mais claro do que isso?”
Várias ONGs de direitos humanos e políticos criticaram duramente a matança de traficantes, ressaltando que o estado de direito numa democracia como as Filipinas deveria ser respeitado e que, se a violência continuasse, inocentes seriam atingidos. A relatora especial da ONU para execuções sumarias, Agnes Callamard, fez um apelo para que as autoridades filipinas adotem medidas com efeito imediato no sentido de proteger todas as pessoas de assassinatos encomendados e execuções extrajudiciais. Ela acusou Duterte de ter, na prática, dado à polícia e a outros licença para matar. Isso levou Duterte a ameaçar retirar as Filipinas da ONU. No dia seguinte, o ministro de Relações Exteriores tentou acalmar os ânimos, dizendo que as Filipinas não deixariam a ONU e que o presidente estava somente expressando sua frustração com o órgão. A Human Rights Watch apelou para os EUA e a membros da União Europeia no sentido de deixar claro para Duterte que tal violência é inaceitável e que vai trazer custos diplomáticos e econômicos severos.
A substância que tomou conta do país desde os anos 1990 é a metanfetamina, fabricada em laboratórios clandestinos, barata e altamente viciante. O tráfico dessa droga nas Filipinas é controlado por redes de criminosos da China, que dificulta a ação do governo filipino contra os chefes desse comércio. Isso também tem dado um tom nacionalista à campanha contra o shabu, como a droga é chamada popularmente nas Filipinas. Vários pequenos traficantes mortos nas ruas da capital, Manila, e outras cidades apareceram com cartazes ao lado dos corpos com a inscrição “traficante chinês”.
Manuel L. Quezon III, subsecretário de Comunicações da Presidência durante o governo de Noynoy Aquino, acha que políticos, jornalistas e juízes têm moderado suas críticas à guerra contra o shabu por medo. “Eles têm medo da opinião pública e do presidente. Os apoiadores do presidente são eloquentes, agressivos, abundantes e, em alguns casos, organizados. Eles ocupam a mídia social e sites de meios de comunicação locais e estrangeiros. O próprio presidente tem um dom para alvejar personalidades específicas que, na sua mente, representam um desafio à sua autoridade. Esta combinação é formidável e, considerando o entusiasmo com o uso da força, exige que cada indivíduo que se aventure a expressar uma opinião considere bem as consequências,” disse-me Quezon.
Para Richard Heydarian, professor assistente de Ciência Política na Universidade De La Salle, em Manila, se o presidente Duterte não moderar sua campanha antidrogas, o país pode ser convocado a prestar contas pelo Tribunal Penal Internacional.
“A mensagem de Duterte de que esta é uma questão de segurança nacional de máxima urgência falou ao coração da maioria dos filipinos, que lamentam os procedimentos complexos do sistema judicial do país, a paralisia no governo nas últimas décadas e, em geral, os baixos níveis de lei e ordem. A pressão externa, no entanto, está crescendo. E há uma possibilidade de que o Tribunal Penal Internacional intervenha em algum momento se Duterte não diminuir as ações. É possível que, com mais de 500 mil suspeitos de tráfico/consumo se rendendo ao governo, Duterte passe para a fase de reabilitação ou mude o alvo de sua guerra para a corrupção e outras mazelas burocráticas. Até agora, parece que a oposição interna ainda não chegou a um limiar crítico. E a oposição, em geral, ainda não se cristalizou,” disse-me Heydarian.
Está claro que a guerra de Duterte contra traficantes tem amplo apoio público. O problema é que vários inocentes vão ser executados em casa ou na rua. Uma menina de 5 anos já morreu quando vigilantes dispararam contra o avô dela, um suposto traficante, e a atingiram. As Filipinas são um país democrático, que lutou e sofreu muito para se livrar da ditadura da família Marcos. Será lamentável ver esse país se render ao populismo quase fascista de Duterte na tentativa de acabar com o mal do vício das drogas. Há meios dentro da lei para fazer isso, sem recorrer a paramilitares. Esquadrões da morte não têm lugar algum num país livre e democrático.
Rasheed Abou-Alsamh é jornalista
http://oglobo.globo.com/opiniao/matanca-de-traficantes-nas-filipinas-assusta-20036828#ixzz4JI40hZSN
[…] (August 30 Questions from Rasheed Abou-Alsamh, and my answers to the questions. A portion was quoted in his article.) […]