"Men at Work III" do artista saudita Abdulnasser Gharem
Esta coluna foi publicada no O Globo de 02/02/2018:
Instituição vai organizar em outubro festival de arte árabe em Nova York e mandar artistas sauditas para estudar na Califórnia
A ação contra a corrupção na Arábia Saudita começou a se encerrar no sábado passado, quando o príncipe Alwaleed bin Talal, bilionário homem de negócios, foi libertado de sua prisão de luxo no hotel Ritz-Carlton, na capital, Riad.
Horas antes, uma entrevista que ele concedera à agência de notícias Reuters foi postada na internet. No vídeo, o príncipe — dono de uma riqueza pessoal estimada em US$ 17 bilhões e um dos homens mais ricos do mundo — negou categoricamente que seja corrupto e que tenha insistido em ficar mais tempo no hotel para se livrar de suspeitas. Pareceu estranha a forma como ele mostrou a minicozinha, aonde traziam pratos veganos para suas refeições, já que é proprietário de um palácio em Riad com mais de 400 cômodos. Alwaleed disse que vai ficar no comando da Kingdom Holding, que engloba várias redes de TV a cabo, uma gravadora, participação no Banque Saudi Fransi e participações milionárias em Citibank, Apple, Twitter e Lyft, entre outros.
A notícia da libertação de Alwaleed fez o valor das ações da Kingdom Holding subir 10% em um dia, depois de ter caído mais de 20% quando ele foi preso, em novembro.
Bakr bin Laden, ex-chefe da construtora Saudi Binladin Group, também foi libertado na semana passada. Mas o governo agora controla a construtora, apesar de a família Bin Laden manter várias cadeiras no conselho executivo. A empreiteira enfrentava tempos difíceis nestes últimos anos, apesar de ser contratada durante décadas para a expansão das mesquitas em Meca e Medina. Mas um acidente lamentável ocorreu na Grande Mesquita de Meca em 2015, quando um guindaste caiu durante uma ventania violenta e matou 107 pessoas. Parece que isso selou o destino da construtora, que nunca se recuperou do baque.
Em todo caso, o procurador-geral saudita, sheik Saud al-Mojeb, anunciou na terça-feira o fim das investigações sobre as 325 pessoas que tinham sido detidas no Ritz-Carlton. Também anunciou que o governo tinha recuperado US$ 107 bilhões em acordos feitos com os príncipes e empresários detidos. Restam mais ou menos 60 detentos, que se recusaram a fazer um acordo ou admitir ter ganho dinheiro de forma ilegal. Eles foram transferidos para a prisão de Al-Hair, ao sul da capital saudita. E vão enfrentar processos judiciais.
Até onde a vista alcança, o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman (MBS), de 32 anos, tem o apoio da população saudita para esta campanha contra a corrupção e a favor de uma abertura nos costumes. Sob sua influência, seu pai, o rei Salman bin Abdulaziz, autorizou as sauditas a dirigirem automóveis a partir de junho deste ano. Até 2017, o reino conservador era o único pais no mundo que impedia mulheres de dirigir. O rei Salman também ordenou a reabertura de cinemas, depois de uma pausa de mais de 30 anos, e também liberou a entrada de mulheres em estádios para assistir a jogos de futebol.
Mas é na área de cultura que MBS está indo mais longe. Ele autorizou a formação do Misk Art Institute (Instituto de Arte Misk) e nomeou o artista plástico saudita Ahmed Mater para dirigir a instituição. O príncipe herdeiro já preside a Fundação Misk, com programas educacionais, sociais e culturais voltados para a juventude saudita.
A instituição tem vários artistas sauditas que estão em exposição num museu no Brooklyn, em Nova York, e está escolhendo o design para o pavilhão saudita na Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano. Também vai organizar em outubro um festival de arte árabe em Nova York e mandar artistas sauditas para estudar na Califórnia. Mais de 60% dos cargos de gerência na entidade são ocupados por mulheres.
Diretores sauditas ficaram muito empolgados com a notícia de que cinemas iam voltar a funcionar no país. Ate então, eles só podiam exibir suas obras no exterior ou na internet. Agora, com estas reformas culturais, vão poder mostrar seus filmes em cinemas locais ou na TV saudita.
A cineasta saudita Faiza Ambah, que filmou na França em 2015 “Mariam” — sobre a luta de uma jovem francesa mulçumana para usar o hijab (véu islâmico) na escola pública —, me disse que, recentemente, exibiu sua obra a um grupo misto de jovens sauditas num café em Jidá e depois participou de uma conversa com o público sobre o tema do filme.
“A reação da plateia foi muito surpreendente para mim,” disse. “Primeiramente, eles entenderam o filme em vários níveis. Eram realmente fãs do cinema. Metade da plateia era feminina, e duas garotas falaram sobre relacionamentos que não deram certo justamente por causa da questão de usar ou não o hijab,” contou a diretora.
Segundo Faiza, já está programada a próxima exibição de um filme nesse café, de outra cineasta saudita, Shahad Ameen.
Faiza me disse que já recebeu convites para exibir curtas na TV saudita, e que a Fundação Misk está concedendo financiamento a cineastas do reino. “O Centro Cultural do Rei Abdul Aziz, na província oriental, também está apoiando cineastas sauditas. Eles me ligaram um ano atrás e pediram que eu compartilhasse novos projetos com eles, e queriam me apoiar. E uma professora universitária que estava na plateia se ofereceu para me indicar seus alunos para serem estagiários em qualquer projeto que eu venha a executar.”
Há apenas cinco anos, este nível de apoio oficial a artistas e cineastas sauditas não existia. Financiamento para filmes sempre vinha da área privada, e, mesmo assim, vários cineastas sauditas tiveram que buscar financiamento estrangeiro para poder filmar. Mas, agora, parece que o governo saudita se deu conta do soft power que a cultura tem. Resta ver quanta liberdade os artistas sauditas vão ter.
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