Essa é minha coluna que apareceu no O Globo de 23 de março, 2012
Rasheed Abou-Alsamh
Pela primeira vez em 56 anos, milhões de eleitores egípcios vão poder eleger seu presidente em eleições democráticas no dias 24 e 25 de maio. Até hoje, egípcios só podiam eleger um presidente não numa eleição democrática, mas num referendum em que votavam sim ou não para um só candidato. Com isso, Gamal Abdel Nasser foi eleito com 99,9 por cento dos votos em 1956, e Hosni Mubarak eleito cinco vezes em referendos similares até sua derrubada na revolução popular do ano passado.
Com uma população de 85 milhões, e um eleitorado de quase 52 milhões, o Egito sempre foi uma potência no mundo árabe, especialmente nas áreas de força militar, cultura, educação e filmes. Não é por nada que as pessoas chamam o Egito no árabe de “Umm al Dunia” ou “Mãe do Mundo”. Mas com a derrubada do ditador Mubarak e de seu partido secular, o Partido Nacional Democrata, o cenário político foi aberto plenamente para os partidos religiosos, banidos até então por décadas.
Nas recentes eleições parlamentares, a ala política da Irmandade Muçulmana, o Partido da Liberdade e Justiça, banido até o ano passado, e a dos partidos Salafistas, que são ainda mais conservadores, ganharam uma maioria esmagadora, deixando os laicos e cristãos com medo do que pode vir adiante. Mas é bobagem acreditar nos alarmistas que falam que o Egito vai banir o consumo de bebidas alcoólicas, não vai deixar mulheres usarem maiôs nas praias e romper relações com Israel se os islamistas conquistarem a presidência. Vários oficiais da Irmandade já disseram que, apesar de não gostar do estado judaico, não vão romper o tratado de paz assinado pelo presidente Anwar Sadat em 1978.
E é esse pragmatismo dos islamistas que devia acalmar os ânimos dos laicos e cristãos. Afinal, o turismo é uma das maiores fontes de renda do país, rendendo ao Egito um recorde de 8,42 bilhões de euros em 2008, quando 12,8 milhões de turistas visitaram o país. Os islamistas devem levar em conta que negar um chope geladinho para aquele turista europeu ou americano depois de um dia puxado de visitações às pirâmides ia causar mais estrago à economia do que se ganharia em pontos morais.
Eleitores egípcios vão ter um amplo campo de escolhas para o cargo de presidente, com pelo menos 300 pessoas tentando se candidatar. Candidatos independentes vão ter que arrecadar assinaturas de pelo menos 30.000 eleitores vindos de todas as províncias, ou o apoio de 30 parlamentares, para que seus nomes apareçam na cédula. Mas com o prazo para a entrega de assinaturas somente no dia 8 de abril, ainda tem muita especulação de quem vai se candidatar ou não, e a Irmandade anunciou que não ia revelar sua escolha para candidato até o fim do prazo de registro dos candidatos.
Mesmo assim, já sabemos de alguns nomes de candidatos, como o Amr Moussa, um diplomata de carreira que foi ministro de Negócios Estrangeiros (1991-2001) e chefe da Liga Árabe (2001- 2011). Ele é muito conhecido tanto no Egito como no exterior, mas pode sofrer por ter sido associado ao regime do Mubarak. Ele lidera as pesquisas de opinião, com 26% dos respondentes escolhendo-o como o futuro presidente do Egito em uma enquete de 2011.
Na ala islamista, o candidato que mais chama a atenção é o Abdel Moneim Aboul Fotouh, um ex-membro da Irmandade Islâmica, que é médico por formação. Ele passou, ao todo, mais de seis anos em prisão por se opor às políticas dos presidentes Sadat e Mubarak, e destacou- se quando liderou o sindicato dos médicos, tradicionalmente um reduto da Irmandade. Ele está atraindo o apoio de eleitores mais tradicionais, bem como o apoio dos mais jovens, e até de feministas e esquerdistas. Ele tem defendido a necessidade de um completo controle civil dos militares e da proteção de direitos civis.
E é para o todo-poderoso Supremo Conselho das Forças Armadas (SCAF) que muitos egípcios estão olhando com apreensão, esperando que eles deixem o povo decidir quem vai governar nos próximos cinco anos. Muitos têm medo que o SCAF queira ficar com a última palavra em questões de governança, e que ele ajude políticos ligados ao antigo regime de Mubarak a ficarem no poder.
Não podemos enfatizar o suficiente o quanto importante essa eleição vai ser, não somente para os egípcios, mas também para o mundo árabe inteiro. Essa eleição está sendo acompanhada de perto por todos os árabes, como um teste importantíssimo dos levantes da Primavera árabe. Se os egípcios conseguirem eleger um presidente representativo da maioria da população, e com pleno poderes para governar, inclusive controle sobre os militares, aí sim, o mundo árabe vai ver que suas revoltas valeram a pena. Também vão sentir que podem enxergar a luz no fim de um túnel escuro de mais de 50 anos de vida sob ditaduras.
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